Friday, July 07, 2006

Pequenos personagens, grandes histórias

Estava no ônibus indo para uma cidade aqui perto, e sentei ao lado de um rapaz, daqueles que parecem ter diamantes nos olhos, tipo raro. A viagem era curta, mas já que estávamos ali mesmo, e como sou uma senhora que adora ouvir histórias, e as aprecia como quem come merengue de morango (e ri das aliterações) me pus a postos para a linda narrativa. A história parece simples. Se eu fosse jornalista, escreveria apenas: Moço pega a estrada para ver palestra em São Paulo e acaba perdendo a hora. Lead sem graça esse...como viram não tenho traquejo para jornalista, e pelo fato de Jornalismo ter sido a segunda opção no vestibular, hoje sou bacharel em Letras e adoro brincar de escrever. Por isso, a narrativa que se segue vai além do "Moço pega a estrada para ver palestra em São Paulo e acaba perdendo a hora".
Se ela for boba, romântica e até meio piegas, me desculpem, a idade traz a intensa vontade de viver histórias mil...um dia vocês me darão razão.

Enfim, o tal rapaz, o dos olhinhos de diamantes, iniciou, ainda com o frescor de quem acaba de passar pelo momento emocionante, lembrando cada palavra que foi dita (e foram ditas muitas palavras). O garoto veio para São Paulo com a finalidade de assistir uma palestra sobre Jean Paul Sartre (e já se percebe por aí que o rapaz é do bem). Mas bem se sabe que o trânsito caótico de Sampa prega peças que dariam bem uma tragédia. Tudo bem, sem drama: daria uma comédia de erros. O que aconteceu foi que o rapaz chegou na frente do anfiteatro ao final da discussão. Sem jeito, se colocou num canto, discretamente, e lá ficou. Notou, do outro lado do salão, uma garota de cabelos longos (e aí inicia-se a verdadeira e lacrimejante história). Cabelos lindos, cor de mel, pareciam ter saído dum comercial de shampoo. Como que sentindo a insistência do olhar paralisado nela, virou-se para o rapaz, e trocaram assim, o primeiro olhar. Olhos negros como a noite em eclipse, olhinhos ciganos mas nem um pouco dissimulados. Fitaram-se por segundos intermináveis (e ele sorriu de leve, lembrando Einstein e a relatividade). Até que não mais podendo aguentar, a moça abaixou os olhos, graciosamente olhando as unhas recém-pintadas. Os olhares se repetiram até que o palestrante desse fim à discussão, e as pessoas aos poucos fossem se dispersando. O rapaz estava indo embora, passaria a noite na rodoviária esperando o primeiro ônibus de volta para casa, na manhã seguinte. Atravessou a rua e olhou para trás, uma última olhada. E lá estava aquela mulher, destacando-se dos demais como água no deserto. Ela olhou e sorriu, um sorriso amigável mas ainda assim instigante. Pois foi o motivo que bastava para ele se aproximar. A conversa começou fria, cheia de brancos entre uma frase e outra, mãos tremendo, voz rouca e boca seca. Depois das perguntas clássicas, já sabendo seu nome (Beatriz, lindo como ela) contou sobre o seu azar. E a moça, compadecida de seu infortúnio, aceitou acompanhá-lo até um café. Enquanto se falavam, a garota o olhava atentamente, um olhar extremamente intenso que oscilava entre o doce e o sedutor, embora em momento algum tenha usado truques femininos para isso. Conversaram a noite toda, uma conversa que lembrou aos dois o filme "Antes do amanhecer". De Sartre a Tom e Jerry, de Bach a Radiohead, cinema nacional, europeu...relacionamentos que acabaram assim, sem se perceber, espaguete ao molho branco com vinho, os escândalos do governo, os planos para o futuro. Muitas coisas em comum, outras nem tanto. Durante todo o tempo que passaram juntos, não houve um toque sequer. Totalmente respeitoso e comedido. Parecia que a moça, de tanto assistir Vanilla Sky, havia adotado como filosofia de vida o 'pleasure delayer'. Mas em alguns momentos...O rapaz me conta de um momento singelo em que a moça segurava uma garrafa de água. Com a outra mão, ela mexia na tampa, como que acariciando-a. Neste instante, o rapaz fecha os olhos, e deseja...deseja aquele toque como jamais havia acontecido. E foi isso. Fim. Não trocaram telefones, não se cobraram outro encontro. Disse-me ele: "Sabe quando você acha algo tão bom que tem medo de estragar?" Ele preferiu guardar essa noite na cabeça para sempre, e não tenho dúvidas que guardará. "Algo tão intenso, que não foi um encontro de corpos, foi um encontro de almas". Assim ele finalizou sua descrição. E eu, em lágrimas, lembrava um amigo, também escritor: "mulher, seja como for, já é feita para amar". Quando me dei conta, o ônibus já havia chegado ao seu destino. Me despedi do rapaz, e passei um dia diferente...um dia lembrando. Sabe, eu também já tive uma madrugada assim quando era jovem. E nunca mais me esqueci.

14/06/2005

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