Friday, August 25, 2006

O dia seguinte ao adiamento.

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma... Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,

Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro.
(Adiamento, Álvaro de Campos)

Mas só amanhã...hoje não farei nada, só planos.

Ontem foi daqueles dias. Não diria que tenha sido ruim, definitivamente não houve nada, nadinha, absolutamente nada, e assim sendo não podemos computá-lo como um dia catastrófico. Mas um dia concha, aquele dia que acontece para todos, de tempos em tempos (e quando a pessoa, assim como eu, tem dom para personalidade-concha, esses intervalos são menores, os dias conchas vêm com mais frequência. E então, começou minha peregrinação (pois, não se enganem com a quietude externa, dias assim urram, doem).

A primeira fase é dormir. Muito. Dormir até não poder mais, até que seus olhos implorem para você deixá-los um pouco abertos, vivos para a luz do dia (luz que grita brilhante: Eu existo! De nada me valem suas cortinas de pano grosso, que teimam em se fechar). Depois de uns cinco pesadelos seguidos, entendi a mensagem, e atendo aos apelos do meu corpo, do meu subconsciente, da minha cortina de pano grosso, cansada do escuro, do sol-guerreiro, com sua luz deliberadamente indelével, enextinguível. Levanto.

Segunda fase. A revolução. Desligo os telefones, meu contato com o mundo externo. Não, não adiantaria fugir.
Notícias nos acham, em qualquer canto-concha que tentemos nos enfiar. Religo o
celular. E peço, amável, que ele não me traga notícias, por hoje.

Terceira fase. Arrumar a bagunça. Da casa, do quarto, do subsolo (o meu subsolo, minha mente confusa). Aos poucos. Começo pelo armário, o coitado guarda, silenciosamente, tantos objetos truncantes. Sim, daqueles que servem de modelo perfeito para "tinha uma pedra no meio do caminho". As pedras que marcaram meus medos, minhas angústias. Objetos pelos quais eu guardo sentimento, nutro afeição. Pra quê? Sentimentos por coisas atravancam os sentimentos por pessoas. Eternizar momentos? Na memória só. Roupas antigas, maquiagens vencidas (eu já havia me livrado das calcinhas desbotadas e das meias furadas no calcanhar no quando da visita
anterior a essa do dia-concha).

Quarta fase. O resto da tarde me cuidando. Comida saudável, abdominais, flexões de perna, pesinhos leves nos braços, que tenho horror àqueles músculos definidos.

Quinta fase. Começo da noite, embelezamento externo para ver se muda algo por dentro: máscara facial, tratamento intensivo para os cabelos, calmante para as - cada dia mais visíveis - olheiras. Unhas, depilação, coisa de mulherzinha. Uma bela escova.

Sexta fase. Pronto. Linda. Refeita. Uma ligação: "Vambora pro samba?" Não, hoje não.
Hoje termino como acordei: CONCHA (superstição boba, fechar o ciclo).

Sétima fase. Pensar. Repensar. Elaborar.
"Se hoje não fiz nada, amanhã, quem sabe, só para variar?" pensei. Hora de ativar a lixeirinha mental. Coleta seletiva, que manda sentimentos bons para o coração, para a memória de elefante que eu insisto em ter. E que manda os sentimentos "pedra no caminho" lá para o
rim. Me entupo de água, para o quanto antes eliminá-los - os sentimentos ruins presentes nos rins - na primeira ida ao banheiro. Deixar lá aquele amarelado do rosto, da alma (e então eu rio, lembro de amigos queridos, e volto a me sentir leve). Quieta. Subsolo em lento processamento de dados (anoto: abrir mais espaço no dísco rígido). Seleciono o que vai, o que fica.

Fase final. Quarto, reclusão. Um tanto de música boa, outro tanto de leitura interessante. Olho para o teto. O meu amor continua lá, como nas noites anteriores. Me esperando, como ele é paciente! A visão de pessoa tão querida me deixa calma, relaxada. Meus olhos, que antes imploravam para ver o mundo, pesam dois sacos de areia nas minhas pálpebras. Meu último pensamento: "Amanhã, sem falta". E durmo.

No comments: