Monday, October 23, 2006

Sobre a princesinha do papai...

Um dia, a boneca percebeu que seu rostinho não era de louça.
(e ainda assim, seu coração quebrava à toa)

Um dia a boneca percebeu que não era de pano. E foi logo ao sentir na pele as pancadas da vida, a frieza à queima-roupa.
(e amigos, acreditem, a frieza queima)

Mas, apesar da dor...a boneca também podia sentir o vento bater em seu rosto, seu amor beijar-lhe os lábios... e isso valeria qualquer tapa na cara.

Um dia jogaram fora o vestido branco com detalhes de fita verde que vestia o corpinho frágil da boneca.
(e lá se foi sua pureza, levando consigo um tanto da sua esperança)

Um dia a menina se perdeu no tempo, e largou a boneca, esquecida num canto mofado do quarto. Neste dia, a boneca teve que escolher: ou ela era deixada de lado, com suas incertezas; ou ela crescia, como deveria acontecer com aquela menina dona de seu corpo, um corpo que já dava sinais de mudança: denotava uma sinuosidade crescente.
(as suas curvas de mulher, cada dia mais aparentes)

A boneca...ela não escolheu. Então ficou assim, peça desencaixada no mundo, tocada pelo mal de Iroquês. Uma boneca mecanizada, fruto da modernidade. Mas sem manual (ou talvez ele apenas esteja em outra língua, uma língua inventada, sem tradução possível).

Uma boneca que perdeu o direito de viver a natureza intocada do 'ser-boneca', do 'pra sempre faz-de-conta', do eterno 'era uma vez'.

Uma ex-boneca, fugindo do dever de ser um futuro alguém, que a essa altura já deveria ter uma família, um emprego com salário no final do mês, uma casa com três carros na garagem, mesmo que isso lhe custasse o nome sujo no SPC.

Um ser humano registrado, carimbado, inserido na sociedade (se quiser voaaaar).

Uma pessoa que, como todas as outras, paga seus impostos - ou não - tem ceia no natal, faz brinde no reveillon e se liberta no carnaval.
(sempre haverá uma quarta-feira de cinzas para a nossa redenção)

Alguém que chore com filmes tristes, que ria vendo comédias, que durma na sessão da tarde. Assim, simples, tão simples, não? Todo mundo faz.

Mas para ela... algo aconteceu. Talvez uma árvore tenha caído no meio da estrada de tijolos amarelos, durante a última tempestade.

E aquela que vivia em sua hermeticamente segura vida de boneca, é hoje um espectro de boneca, uma sombra platônica, que talvez nem seja o que parece. Ela é uma quase-humana. Ela caminha, cambaleante, pra um futuro às escuras, um 'blind date' inevitável com ela mesma.

Pensando bem, a que um dia foi boneca, não é quase-humana, não é sub-humana (não somos, Freud Flinstone querido).

Ela é humana, humana demais. E talvez isso explique o fato de ela ser assim: covarde.

Então ela aceita, e segue. Segue uma vida protocolada e cinza, com seu sorriso amarelo e seu vestido preto.

Mas só até que uma borboleta voando, uma criança sorrindo ou o olhar querido do seu amor... a libertem, por mais um instante, da dureza da vida adulta.

2 comments:

Anonymous said...

passei rapidinho pra dizer que adoro você, e que estou de volta!hehe beijos linda!

Anonymous said...

Texto... Inspirações profundas... Endógena e exogenamente... Vida! Sempre viva e nunca igual. Apesar da rotina "massa" que temos todos os minutos transeuntes perplexos e perdidos em seu próprio ser. Vida: de boneca e de estilhaços de porcelana. Vida: sempre viva e nunca morte. Vida...
Belo texto, menina!

Beijos de seu amigo "oculto"... rs